Todo dia pela manhã, antes de levantar, fico despreguiçando na cama com a TV ligada no programa da Ana Maria Braga.
É verdade!
Adoro assistir programas de culinária. Nigela, adoro! O loirinho gringo que esqueci o nome já gostei mais, agora está muito showman. Pra você ter uma idéia, sou do tempo da Cozinha Maravilhosa da Ofélia, essa sim era cozinheira de verdade.
Assisto porque gosto de cozinhar, embora não cozinhe tão bem quanto gostaria, mas engano bem. Ontem mesmo fiz um frango com quiabo que ficou bem gostoso! E tudo que sei de cozinha devo a esses programas. Minha mãe sempre trabalhou fora e nunca teve tempo pra me ensinar a fazer um arroz.
Isso tudo pra dizer que assisto Ana Maria Brega enquanto acordo e enquanto me arrumo pro trabalho. Mas de uns tempos pra cá, a dona do papagaio cismou que aquilo lá é lugar pra fazer jornalismo.
Quem me conhece sabe que tenho uma relação masoquista com a TV. É muito comum me pegarem aos berros com algum apresentador de televisão incompetente, ator de novela imbecil, ou jornalista vendido. Tenho consciência que poderia desligar a TV, mas é uma relação masoquista, já disse.
O fato é que hoje cortei relação com a ilustre apresentadora do programa matinal. Não dá! Chegou no limite.
Eu a agüentei falando sem parar durante o seqüestro pelo namorado da menina lá em São Paulo; entrevistando in loco, de galocha, uma mulher que tinha acabado de perder a família em Santa Catarina durante a catástrofe da enchente; e chorando junto com os pais do João Hélio no estúdio da Globo (neste dia, confesso que desliguei a tv).
Mas hoje enchi o saco.
Não é que ela levou ao ar, ao vivo, o advogado que teve o carro roubado – carro importado, diga-se de passagem - e depois empurrado de um penhasco por assaltantes?
(Pra quem não acompanhou, o penhasco nem me pareceu tão alto assim, uma vez que a namorada caiu e não sofreu grandes danos e o advogado ficou agarrado em uma árvore, sofrendo alguns arranhões).
Estava ela lá, com o peito cheio de indignação, dizendo ao espectador que nem nos piores pesadelos poderia imaginar uma situação dessas.
E eu lá ouvindo tudo em silêncio.
Foi aí - com a foto dos bandidos ao fundo, todos negros e raquíticos - que ela soltou a pergunta padrão, que esses apresentadores e jornalistas a serviço da mídia espetacular insistem em fazer quando riquinhos sofrem algum tipo de agressão nesta “selva” de Rio de Janeiro, cercada por favelas e favelados, negros, famintos, insanos e perigosos.
- Você pensa em sair do país?
- Porra, meirmão. Tomá no cú! Sair do país é o caralho!, berrei.
Essa mulher precisa dar uma voltinha ali na baixada, no alemão, na maré. Lá minha filha, morre um monte de gente inocente, em contextos piores do que este, mas ninguém convida a família para ir a nenhum programa de televisão ao vivo.
Casos iguais ao do João Hélio – morte de uma criança, seja arrastada ou por bala perdida durante tiroteio - acontecem todo dia, mais de uma vez ao dia se bobear, só que não foi lá na Tijuca, bairro classe média, ou em Ipanema, mas na porta de casa em uma favela qualquer.
Cadê o espaço dessas pessoas na TV para derramar seu sofrimento para nós espectadores solidários? Não tem, né?
Quando essas pessoas aparecem na TV, aparecem em bando, fechando rua em protesto, levantando cartazes. Nenhuma mãe pobre vai ao programa da Ana Maria, ou qualquer outro, para contar tintin por tintin, como fez o advogado - ou os pais do João Hélio - o drama da sua história.
O caso do advogado sensibilizou a loura, porque poderia ter sido com ela, ou com o público classe média do seu programa. A enchente de Santa Catarina atingiu gente com a gente, que tem casa, carro e perdeu tudo, poderia ter sido um de nós. A morte do João Hélio, significou a morte de um filho, que poderia ser dela, seu ou meu.
A dor da mulher podre, é só a dor do outro. A dor de um outro sem rosto, misturado entre outros, todos pobres, moradores de favela, pessoas nada confiáveis, vizinhos ou amigos de bandidos, negros e drogados, como todos na favela, como os homens que assaltaram o advogado.
Para essas pessoas a apresentadora não poderia fazer a originalíssima pergunta. Primeiro porque elas não teriam condições nem de sair da favela e, segundo, porque nem iriam querer sair de lá. O que eles querem é segurança no local onde vivem, que também não é só violência, bandido e tiroteio.
O advogado alegou não ter condições de sair do país, senão o faria. Estava lá para pedir segurança. Pediu que bandidos como estes não circulem por aí assaltando inocentes, que a polícia seja mais ostensiva protegendo os cidadãos que pagam seus impostos.
Eu peço por políticas de segurança pública, que impeçam que meninos cresçam e se tornem bandidos, para que não assaltem ninguém. Desejo que a polícia seja treinada tendo como princípio a garantia dos direitos humanos, que deixe de ser sócias dos traficantes num momento – fornecendo armas e recebendo propina - e que, no seguinte, invada a favela soltando tiro pra tudo quanto é lado, matando crianças inocentes.
A dor do advogado é legítima, mas, por favor, não me empurre a história dele com lágrimas nos olhos, porque eu conheço histórias muito mais pesadas, e essas, não vi na Globo.
E sair do país é o caralho, Ana Maria!